
O Marco Legal das Garantias, implementado no sistema jurídico brasileiro por meio da Lei 14.711 de 30 de outubro de 2023, trouxe um grande avanço aos credores, criando mecanismos de aprimoramento das regras de garantia e, principalmente, de recuperação de crédito, como, por exemplo, a recuperação extrajudicial de bens móveis, em decorrência do inadimplemento de contratos de alienação fiduciária.
O Marco Legal das Garantias inovou o ordenamento jurídico, uma vez que antes dessa, as buscas e apreensões de veículos eram realizadas exclusivamente por meio da Ação de Busca e Apreensão, movida junto ao Poder Judiciário e regida pelo Decreto-Lei 911/69.
Na alteração trazida, foi incorporado ao Decreto 911/69 os artigos 8º-B, 8º-C, 8º-D e 8º-E. Os referidos dispositivos legais incorporaram e parametrizaram a possibilidade de o credor realizar a busca e apreensão extrajudicial do bem alienado fiduciariamente, bastando, para tanto, a existência de uma cláusula expressa no contrato.
Veja-se que tal incorporação trouxe a possibilidade de extrajudicializar e acelerar a recuperação de um bem que é objeto de garantia fiduciária, quando ocorre o inadimplemento, sem maiores custos e sem a tradicional morosidade judiciária.
A partir desse ponto competirá ao cartório a realização de todo o procedimento de verificação da documentação, bem como de cumprimento da notificação e apreensão do veículo, entretanto, mesmo tendo o Marco Legal das Garantias sido promulgado em 30/10/2023, a referida normativa não encontrou rápida absorção pelo sistema, tanto que até recentemente os cartórios extrajudiciais ainda não possuíam normativas para cumprimento dos requisitos legais.
Apenas em 20 de Janeiro de 2025, a Secretaria Nacional de Trânsito por meio da resolução 1018/2025-CONTRAN estabeleceu o registro nacional de execução extrajudicial de veículos automotores com alienação fiduciária, criando regras definidas para que realização da busca e apreensão extrajudicial de veículos automotores com garantia fiduciária, visando assim maior celeridade, transparência e economia processual.
A norma citada traz um grande avanço para a matéria em questão, vez que possibilita ao credor fiduciário exercer a faculdade de retomada do bem mediante registro administrativo junto ao órgão administrativo de trânsito, respeitando logicamente, o direito a ampla defesa e contraditório, bem como, o direito de adimplemento do devedor fiduciário.
Nesse aspecto impende pontuar que a resolução 1018/25 prevê condições para que o credor fiduciário exerça tal faculdade. De início, a execução extrajudicial de veículos automotores somente poderá ser exercida se houver cláusula expressa no contrato de alienação fiduciária, e, em destaque, respeitando assim o que se encontra previsto no art. 8-B do Decreto-Lei 911/69, bem como nas normas consumeristas.
Ainda, deve o credor fiduciário comprovar a constituição do devedor em mora, que deve ser realizada mediante notificação ao devedor, preferencialmente de forma eletrônica, e, em caso de ausência da sua ciência inequívoca, isto é do recebimento da notificação eletrônica, caberá ao credor fiduciária a realização da notificação, por meio postal com aviso de recebimento, concedendo ao devedor o prazo de 20 dias para pagar voluntariamente a dívida, apresentar documentos comprobatórios que a cobrança é indevida ou realizar a entrega do bem.
Deverá ainda conter na notificação enviada ao devedor os seguintes documentos cópia do contrato, o valor total da dívida, planilha com detalhamento da evolução da dívida, boleto para pagamento, dados do credor fiduciário, forma de entrega ou disponibilização voluntária do bem e advertências referente as consequências da inadimplência.
Vale mencionar que havendo contestação da dívida, ou seja, comprovando o devedor que tratar de cobrança indevida, caberá ao credor fiduciário realizar a avaliação e tomada de decisão quanto ao prosseguimento ou encerramento do procedimento de execução extrajudicial.
E, não havendo nenhuma das providências pelo devedor, poderá o credor prosseguir com a busca e apreensão extrajudicial, mediante solicitação ao órgão de trânsito, que por meio de empresa registrado de contrato credenciada será expedida certidão de busca e apreensão e inclusão de restrição de circulação e transferência, cabendo ao credor realizar as diligências necessárias para localização do bem, que deverá ocorrer somente em dias úteis, entre seis e dezoito horas.
Assim, a partir da referida Resolução, em linha do que já havia sido estabelecido pelo Marco Legal das Garantias, o CONTRAN estabeleceu a normativa e possibilitou a instrumentalização do procedimento administrativos para que os credores pudessem buscar a restituição do seu bem móvel de forma extrajudicial e célere.
Ocorre que a referida Resolução adicionou mais um entrave para o cumprimento das Execuções Extrajudiciais de Veículos, uma vez que estabeleceu em seus artigos 9º e 10º que caberia aos órgãos ou entidades executivos de trânsito dos Estados e do Distrito Federal a credenciarem e fiscalizar as empresas registradoras de contrato especializadas, que tivessem interesse em prestar tal serviço.
Assim, apenas em 07 de agosto de 2025, foi promulgada a portaria 597/2025 do SENATRAN, estabelecendo os critérios técnicos para o credenciamento das empresas registradoras dos contratos especializados, viabilizando assim, ambiente tecnológico que garanta segurança nos atos de processamento extrajudicial praticados em conformidade com a Resolução Contran 1018/2025, bem como do Marco Legal das Garantias previsto na Lei 14.711/2023.
Preenchidos os requisitos previstos na referida Portaria, bem como sendo devidamente possível a integração dos sistemas com o sistema EXTRAJUD, o credenciamento as empresas registradoras passarão a realizar os atos de processamento da execução extrajudicial de veículos automotores.
Diante de tais regras, está evidente que haverá um trâmite processual com regras estabelecidas e definidas, devendo o credor cumprir diversos requisitos e garantindo ao devedor fiduciante defesa, liquidação ou entrega do bem, não se tratando de medidas que ficariam a critério do próprio credor até para que ocorra a busca e apreensão extrajudicial.
Nesse aspecto é evidente que tal medida visa claramente dar celeridade e economia ao procedimento em questão, facilitando assim aos credores recuperar os bens que foram dados em garantia em financiamentos.
Como já destacado o processo judicial de busca e apreensão, como qualquer outro processo judicial, demanda altos custos, morosidade, burocracia e diversos atos até que seja realizada a apreensão do bem, em que, na sua maioria das vezes, ao ser leiloada não atinge valor suficiente para liquidar o saldo devedor, causando assim, além da demora na recuperação do crédito ou parte dele, prejuízos aos credores fiduciários.
É certo que a alienação fiduciária já garante ao credor fiduciário mecanismos e meios para retomada do bem e recuperação do seu crédito, uma vez que tal garantia se trata de propriedade resolúvel, que é acoberta por inúmeras garantias e facilidades em seu recebimento.
No entanto, a apreensão de bens móveis ainda padecia de uma grande morosidade devido ao trâmite judicial, por isso a possiblidade de retomada do bem de forma extrajudicial trás celeridade e economia, garantindo assim maior segurança nos contratos de financiamento, e por consequência lógica, possibilitando a maior distribuição de crédito com taxas de juros mais justas e equilibradas.
Notadamente, devem ser respeitadas as garantias fundamentais aos devedores fiduciantes, vez que, é inegociável o direito a ampla defesa e contraditório, a transparência das informações, a liquidação do débito antes da retomada do bem, e ainda a possiblidade de entrega do bem, restando assim, garantido os direitos constitucionais e consumerista.
Muito embora seja inegável o avanço com a implementação do sistema EXTRAJUD, faz se necessário apontar a necessidade de solução para situações de contratos particulares de compra e venda de veículos.
Fato é que existe diversas transações entre particulares em que o registro de contrato de compra e venda perante o órgão de trânsito possibilitaria a solução administrativa para duas situações, a primeira seria propriamente o direito do vendedor em ter seu bem retomado por falta de pagamento, e a segunda, a regularização de diversos veículos que foram vendidos e as partes não tomaram providências de realizar a transferência perante o órgão de trânsito.
Como já dito, ainda que houve avanços que trarão certamente uma maior celeridade na recuperação do crédito do credor fiduciário, a possiblidade de taxas de juros mais justas, ainda é preciso que o Estado atue para buscar solução para situações cotidianas entre os particulares, possibilitando assim que o próprio órgão de trânsito realize as devidas anotações sistêmicas, bem como facilite com que credores fiduciários particulares também acionem tais mecanismos a fim de verem a sua garantia resguardada.
Desse modo, podemos concluir, que o Marco Legal das Garantias implementou um grande avanço no ordenamento jurídico brasileiro, garantindo uma maior celeridade e economia ao implementar e fomentar a utilização de mecanismos extrajudiciais para satisfação do crédito, todavia, mesmo sendo uma importante normativa, essa demorou quase dois anos para ter os seus procedimentos parametrizados e mesmo assim ainda não houve a implementação de mecanismos necessários para garantia de contratos entre particulares.
Posto isto, é possível verificar que a aplicação dos procedimentos administrativos ainda padecem de testes práticos e possivelmente sofrerão ajustes para implementação, mas o que se pode ter certeza é que a extrajudicialização de procedimentos é um caminho sem volta dentro do ordenamento jurídico brasileiro, devendo os interessados e os advogados se especializarem cada vez para sugerirem alternativas eficientes para solução dos litígios.
* Giovane Gualberto de Almeida, advogado, pós-graduado em Gestão, mobilidade e segurança no Trânsito, pós-graduando em Direito Contratual, em Advocacia Trabalhista e em Direito Bancário. Membro Titular do PNATRANS. Presidente da Comissão de Trânsito da Ordem dos Advogados do Brasil da Seccional de Mato Grosso e Secretário do Instituto Brasileiro de Direito de Trânsito
* Bruno Felipe Monteiro Coelho, advogado, economista, professor universitário, mediador extrajudicial, administrador judicial. Mestre em Direito, Especialista em Direito Empresarial, Consumidor e Negocial e Especialista em Auditoria e Controladoria Empresarial. Presidente da Comissão de Direito Bancário da Ordem dos Advogados do Brasil da Seccional de Mato Grosso e Membro da Comissão Nacional de Direito Bancário do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.